Como a tecnologia mudou a vida dos religiosos, que acessam redes sociais e se divertem acompanhando Game of Thrones e outras séries pela internet.
Criado em 1598, apenas 44 anos após a fundação da capital, o Mosteiro de São Bento testemunhou o crescimento do então povoado jesuíta ao seu redor. Hoje, mais de quatro séculos depois, as muralhas do edifício já não impedem a interferência dos ruídos da metrópole, como o da guitarra da estátua viva que toca Black Sabbath no último volume na calçada em frente. Quando desfilam de hábito preto pela vizinhança, no entanto, os habitantes do lugar ainda despertam curiosidade. Muitas pessoas acham que eles ficam enclausurados na antiga propriedade na maior parte do tempo. Não poderiam estar mais erradas. A nova geração de moradores professa a fé na era digital. Aos poucos, equipamentos como tablets, notebooks e smartphones passam a fazer parte da rotina de uma das mais tradicionais ordens católicas tanto quanto os cantos gregorianos. Com sete orações diárias, trabalhos de organização e limpeza, além dos estudos bíblicos, os 38 monges espalham-se durante o dia pelo complexo de 20 000 metros quadrados. Antigamente, era preciso percorrer um labirinto de corredores e escadarias para encontrá-los no local. Hoje, basta mandar uma mensagem por WhatsApp.
O grupo que vive atualmente ali é um dos mais jovens da história do mosteiro, com média de idade de 45 anos — dez a menos que há duas décadas. A grande maioria não aparenta mais de 30 anos. Estes, mais soltos, recorrem a gírias como “tá ligado?” e “mano” durante seus bate-papos e fazem referência a filmes e personagens do mundo pop. A trilogia O Senhor dos Anéis, por exemplo, é assunto recorrente por lá. O rejuvenescimento recente, porém, é resultado de um processo longo. No início do século passado, o mosteiro começou a acolher beneditinos vindos de uma abadia alemã chamada Beuron, onde os monges eram artistas e cultivavam as tradições locais — vem de lá a prática de harmonizar refeições com cerveja, mantida ainda hoje na forma de long necks da Heineken. A última geração germânica, que chegou aqui após a II Guerra Mundial, foi extinta há três anos com a morte de dom Plácido Bockl, aos 91 anos. Restaram os mais novos, o que se refletiu em grandes mudanças na rotina religiosa.
O Abade Mathias Braga – Livros Sagrados compactados em aplicativos. (Foto Lucas Lima)
O maior símbolo dessa transformação é o perfil do atual abade, o nome que a ordem dá ao administrador do local. Alçado ao cargo em 2005, aos 40 anos, Matthias Tolentino Braga tornou-se o mais jovem brasileiro a assumir esse posto. Piloto da Academia da Força Aérea e engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), ambos em São José dos Campos, ele tem intimidade com novidades tecnológicas. Em vez de carregar livros com os ritos litúrgicos usados nas missas, compacta tudo em aplicativos instalados em seu iPhone 5C ou no iPad. “É mais prático, mas muita gente se assusta ao ver esses gadgets no meio do altar”, conta. Os eletrônicos utilizados por ele e pelos outros religiosos pertencem à própria ordem. Diferentemente do que ocorre com os frades franciscanos, o voto de pobreza dos beneditinos não obriga à abstenção total de bens materiais. A única exigência é que haja igualdade no grupo: tudo o que um possui, os outros têm o direito de usar também. “Como consigo acessar a conta de todos, fico sabendo quem abusou das ligações telefônicas durante o mês”, brinca o abade.
O marco da era digital se deu em 2010. Para suprir uma demanda dos alunos da Faculdade São Bento, todo o complexo passou a ter cobertura de internet sem fio. Depois disso, os brinquedinhos tecnológicos invadiram até os recantos mais íntimos da cultura monástica, como a clausura. Por ali só podem circular os próprios religiosos ou uma restrita lista de convidados do sexo masculino. Dedicada à meditação e cercada de misticismo, a área abriga os quartos dos monges, chamados de celas (cada uma tem cerca de 25 metros quadrados e possui cama, armário e uma mesa, onde geralmente ficam notebooks usados por aqueles que cursam teologia ou filosofia). Os equipamentos, porém, também acabam sendo utilizados para atualizar perfis em redes sociais como o Facebook e bater papo. Por vezes, até altas horas da noite. “Temos sabedoria para não deixar que isso atrapalhe nossas obrigações”, afirma dom Mateus Malta, de 25 anos, que pula da cama ás 5 horas, quando um sino ecoa por todo o complexo.
Engana-se quem acha que seguir um monge nas redes sociais é certeza de ver a linha do tempo cheia de postagens religiosas. As publicaçõdes vão de selfies em passeios no fim de semana a comentários sobre séries de televisão como Game of Thrones, recheada de cenas de sexo e violência. Nenhum conteúdo é censurado na internet dos beneditinos. “Cada um tem a responsabilidade de saber o que é necessá rio absorver na rede”, diz o abade. A disciplina monástica, no entanto, não impede que os religiosos compartilhem com frequência vídeos engraçadinhos e memes com piadas sobre política. Por ali, é fácil perceber que a vida no claustro permite fugidas para pequenos prazeres. Fotos do grupo em bares com porções de petiscos e cerveja não são raras.
Essa flexibilização, encarada como natural até pelos mais conservadores do grupo, estimulou também uma mudança no perfil de quem procura viver sob as regras de São Bento. Há alguns anos, era comum ver famílias pobres do interior levarem seus filhos até lá na esperança de conquistar uma vida mais estável. Atualmente, os dois únicos noviços em formação são jovens de classe média da capital com nível superior. Hugo Bartoletti, de 23 anos, trocou um curso de arquitetura nas Faculdades Integradas Alcântara Machado (Fiam) e um estágio de projetista em uma empresa de Alphaville pelo estudo das Escrituras. Ele está no primeiro dos seis anos de preparação, que vai encarar até, enfim, dizer “sim” á vida de monge. Durante esse processo, o uso das tecnologias e o contato com o mundo extraclausura é ponderado para evitar uma “recaída”. Recentemente, sua fé foi posta duramente à prova. Na última Virada Cultural, em maio, a carioca Anitta estava escalada para se apresentar em um palco a 200 metros do mosteiro. Pela distância, o famoso rebolado da funkeira poderia ser ouvido pelas janelas da clausura. “Graças a Deus, choveu e cancelaram o show”, confessa o noviço, aliviado.
Para amenizarem a rotina do claustro, os rapazes viajam aos sábados para uma residência de campo em Itu, a 100 quilômetros da capital. Se o tempo estiver bom, a rota muda e a caravana beneditina aponta para uma casa de praia em Itanhaém, no Litoral Sul. Lá assistem a filmes, nadam e passeiam. Em janeiro, todos têm direito a quinze dias de férias e levam cerca de 200 reais na mala para gastar na viagem.
Com a licença prévia do abade, os monges podem frequentar o circuito cultural e gastronômico paulistano. Vão a sessões de cinema e teatro e saboreiam as guloseimas de espaços tradicionais do centro, como a doceria portuguesa Casa Mathilde, na Praça Antônio Prado. A intenção dessas incursões ao mundo exterior, bem mais raras até a década passada, é complementar à formação monástica, já bastante sólida — a ordem de São Bento é conhecida pela invejável estatura intelectual de seus membros. Quando saem para atividades nas quais representam a Igreja, eles optam por usar o hábito. Mas nas saídas extraoficiais, ou menos formais, podem circular à paisana. Essa conexão social também é útil para os negócios. Depois de quase fechar em 2004, o Colégio de São Bento passou a atrair os filhos dos novos imigrantes do centro. Hoje, 40% dos 300 alunos são chineses, peruanos e bolivianos. “Em cada época, esta região é povoada por culturas diferentes. Temos de estar ligados”, conta o padre Lucas Xiao, que leciona mandarim aos estudantes. As viagens pelo mundo, realizadas frequentemente pelos monges, colaboraram para um salto nas vendas da célebre padaria local, que atualmente fatura 80 000 reais mensais — além disso, foi inaugurada uma filial moderninha no Jardim Paulista, que entrega os produtos em casa e oferece itens pela internet. “Do marketing ao design das embalagens, tudo é inspirado nos países por onde passei”, explica o monge padeiro, dom Bernardo Almeida.
Foto Reprodução.
Com essa onda, até procedimentos tradicionais da vida beneditina foram atualizados para o século XXI. O primeiro passo para quem quer ser aceito no mosteiro, de acordo com as regras originais, é enviar uma carta expressando o desejo. Pois bem, isso já não ocorre há algum tempo. Os cerca de dez pedidos por semestre chegam via e-mail e, muitas vezes, o primeiro contato com a instituição ocorre pelas redes sociais. Dom Gregório Ferreira é quem recebe os aspirantes à vida religiosa. Ele mantém uma página no Facebook com quase 2 000 amigos. “A rede social é um meio de evangelização, e o perfil do papa Francisco no Twitter é um ótimo exemplo disso”, observa. No claustro, há sempre acomodações reservadas para visitantes. É uma das regras de São Bento (“Que os hóspedes do mosteiro sejam recebidos como Cristo”) e remonta ao período da Idade Média, quando as abadias serviam de pouso a muitos viajantes. O prédio paulistano já abrigou o papa Bento XVI, em 2007, e criou, no fim de 2013, quartos fora do claustro, de forma a poder aceitar também mulheres.
Cidinha Rotariana liked this on Facebook.